Mundano a todo vapor

Nesta segunda-feira, o site da revista GQ publicou um perfil que escrevi sobre meu camarada, o artista Mundano. Antes de publicar o texto, a editora Erin Mizuta, que conheci no Terra mil anos atrás, pediu para que eu o cortasse. Estava muito longo. Título e olho também foram mudados. Por isso, publico abaixo o texto original, com direito a novos detalhes e às fotos de minha autoria.

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Como um artista que emergiu do submundo das ruas se torna ícone de uma geração ávida por mudanças. 

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Mundano espalhou tabaco sobre um papel, enrolou um cigarro, arqueou os ombros para acendê-lo e tragou. Seus olhos giraram inquietos. Pensativos. Minutos depois, deslizou os pés sobre os degraus que levam ao palco do único auditório da Casa de Cultura de Paraty e ajeitou-se numa das cadeiras destinadas aos palestrantes convocados pelo sociólogo italiano Domenico de Masi para iluminar a plateia durante uma ensolarada manhã de Março. A mesa estava lotada. O jornalista Florestan Fernandes Junior, que mediava as discussões, calculou mal o tempo e informou ao grafiteiro e artivista Mundano – como ele mesmo se apresenta – que deveria resumir suas palavras. Mundano fez o que nenhum outro palestrante havia feito desde que o ciclo de palestras tivera início, dois dias antes. Em oito minutos, arrancou dois aplausos espontâneos dos espectadores e uma fila de gente querendo saber quem era o jovem que falava com irreverência sobre como é possível usar pincel e tinta para acabar com problemas ambientais no Brasil.

Mundano é o codinome de Thiago T. L. A., que prefere não revelar sua identidade por segurança. “Se há fanáticos que matam inocentes no cinema, por que não fariam isso contra um grafiteiro ou pichador?”. Aos 27 anos, discursou em palestras no Brasil e no mundo. Ensinou o que pensa sobre sustentabilidade nas salas repletas de ar condicionado e executivos de alto escalão do banco Itaú, em São Paulo. Dividiu com o ex-presidente da Nigeria, Olusegun Obasanjo, e com chefes da Unesco o mais sofisticado palco de Tóquio, no Japão. Integrou por três vezes o elenco de pensadores do ciclo internacional de palestras TED. O artista começa a saborear o mainstream da arte brasileira.

Ele chega às 11h22 de uma manhã de Abril em seu escritório na Vila Madalena, São Paulo – um sobrado partilhado por 16 jovens dedicados a desenvolver projetos independentes. Tem os cotovelos sujos de tinta, há pingos brancos sobre seus cabelos lisos e os sapatos abrigam uma constelação de gotas multicoloridas. Neste ano, já concedeu entrevistas para o programa de Serginho Groisman, na Rede Globo, e para a Rádio Eldorado. Nesta semana, recebeu 12 convites para participar de trabalhos de conclusão de curso em universidades brasileiras. Um recado do ator Milhem Cortaz, estrela de “Tropa de elite”, brilha na tela do Instagram: “Quero participar dos seus projetos”.

Mas o que há com esse grafiteiro? Nascido no Brooklin, zona Sul de São Paulo, segundo filho do casamento entre uma decoradora e um cirurgião plástico, Mundano estudou em escolas particulares e passou muitos verões de sua vida em Paúba, uma praia do litoral Norte paulistano, cuja natureza o inspirou tão intensamente que certa vez decidiu usar terra para fabricar a tinta que usaria em seus quadros. Faixa preta de Karatê, ex-pichador, fichado pelo artigo 65 da lei 9.605 de 1998, o que o classifica como um criminoso ambiental, Mundano criou em 2012 o projeto “Pimp my carroça” – talvez o que mais o tenha impulsionado ao sucesso até agora.

Inspirado no programa de televisão americano “Pimp my ride”, que transforma latas-velhas em carros turbinados, o projeto usa a arte para dar reconhecimento ao trabalho de catadores de materiais recicláveis. Teve até hoje duas edições: uma aconteceu em junho do ano passado, em São Paulo, e outra ocorreu dias depois, durante a conferência Rio+20, no Rio de Janeiro. Quase cinquenta carroceiros se reuniram no Vale do Anhangabaú durante a edição paulistana. Suas carroças foram reformadas, estilizadas por artistas plásticos e grafiteiros, ganharam freios, retrovisores e faixas refletivas. Seus donos passaram por consultas médicas, psiquiátricas, oftamológicas, ganharam sapatos novos, corte de cabelo, massagem e almoço grátis. Tudo oferecido por Mundano e sua trupe – centenas de voluntários angariados por ele por meio da empresa que fundou, a Parede Viva. “O objetivo é tirar os catadores da invisibilidade”, diz o artista. “A cidade de São Paulo produz 17.000 toneladas de lixo por dia. Não fosse os catadores, estaríamos ainda mais afogados nos nossos próprios resíduos”.

Discípulo das ruas

Mundano começou a esboçar seus primeiros rabiscos artísticos no fim dos anos 1990, ainda adolescente. Mas conviveu com arte desde a infância. Uma das avós fora uma talentosa pintora de quadros na metade do século e o pai também arriscou-se nas telas durante a juventude. “Meus pais pregavam um quadro na parede antes de comprar um sofá”, conta. Na escola, intimado a comparecer na Diretoria, Mundano deu de cara com uma pilha de folhas de sulfite sobre a temida mesa da diretora. Eram cópias do material escolar do aluno-artista, uma coletânea de flagrantes que escancarava a vocação do grafiteiro: as pichações e desenhos contidos no papelório eram exatamente os mesmos que infestavam móveis e muros do colégio. E certa vez ele teve de acompanhar meia dúzia de coordenadores e professores em um banheiro cujos azulejos pichados o condenavam incontestavelmente.

Em 2002, mais ou menos durante os mesmos dias em que riscava os banheiros da escola, Mundano conheceu o pichador Skid Jr, e então começou o capítulo de sua carreira que poderia ser chamado de “vida de pichador”. “Nessa época nós saíamos para pichar com as latas de spray cheias e só voltávamos com elas vazias”, diz. Mas na noite de 22 de setembro de 2002, Skid Jr escalou um muro da Avenida Francisco Morato, na zona Oeste de São Paulo, e saltou de telha em telha para deixar seu registro na fachada de uma igreja. A fragilidade da superfície não resistiu o peso do moleque de 16 anos, que atravessou o telhado e despencou de uma altura de 15 metros, espatifando-se entre os bancos onde os fiéis costumavam rezar a missa. Skid Jr entrou num coma profundo que durou quase seis meses. Sobreviveu por milagre, disseram os médicos do Hospital das Clínicas. Cirurgião plástico, o pai de Mundano aparecia vez por outra na UTI para ajudar nos curativos das escaras formadas pelo tempo na maca. Mundano acompanhava de perto. “Quando isso aconteceu com o Jr, deixei a pichação de lado e voltei a pintar mais quadros”.

Poucos anos depois, no entanto, Mundano voltava à ativa. Com uma centena de quadros pintados, um ateliê próprio montado nos fundos de sua casa no Brooklin e vários grafites espalhados pela cidade, o artista percebeu que o projeto Cidade Limpa, do ex-prefeito Gilberto Kassab, começava a apagar todo resquício de arte urbana que aparecia na cidade. Mundano já havia deixado de lado as pichações em nome de grupos como “Sujos” e “DME” para dedicar-se exclusivamente aos personagens de sua própria autoria – uma espécie de carranca cujos espaços reservados às narinas e ouvidos são sempre preenchidos com olhos. Nos arredores do Parque do Ibirapuera, bem em frente da Assembleia Legislativa do Estado, um quadrado de concreto que por anos estampava a arte de Herbert e Vitché, dois grafiteiros renomados da capital, fora coberto por tinta cinza, esguichada pelos caminhões da prefeitura. “Lá se vai um trampo histórico”, pensou Mundano.

Ele parou o carro, tirou rolinho e tinta do porta-malas sempre atolado com seus materiais de trabalho, e estampou novos traços no quadrado de concreto. Três meses depois, tudo estava apagado novamente. Mundano pintou mais uma vez. De novo. Repetidas vezes. Em cada uma usava menos tinta, prevendo a chegada dos caminhões comandados por Kassab. Resolveu então incorporar aos personagens frases como: “Apaguem a miséria e não o grafite” e “Cidade limpa de corruptos!”. “Comecei a desenhar balõezinhos e a dialogar com a cidade”, conta. “Questionava por que a prefeitura gastava tanto dinheiro com tinta cinza em vez de solucionar outros problemas”.

As frases jamais deixariam o repertório do grafiteiro e, além disso, migrariam mais tarde para as carroças turbinadas por ele e para outras superfícies, como, por exemplo, uma prova de Geografia distribuída no Ensino Médio do colégio Nini Mourão, em Poços de Caldas, Minas Gerais, em que a professora pediu para os estudantes relacionarem os dizeres “Reciclagem e progresso”, grafitados por Mundano numa carroça, com o poema “Eu, Etiqueta”, de Carlos Drummond de Andrade. As palavras de protesto ganharam mais força em 2009, quando a prefeitura decidiu desocupar a favela Jardim Edite, no coração do Brooklin (“Cidade desigual!”) e em outros episódios, como em 2007, quando o presidente do Senado Renan Calheiros envolveu-se num escândalo de corrupção (“Renancia Renan!”). Hoje é comum andar por São Paulo e flagrar frases como “Você é um escravo do trânsito” ou “Menos concreto, mais árvores”.

Ainda em 2007, graças às constantes incursões dos caminhões de tinta cinza, os grafiteiros passaram a buscar outras trincheiras. Iniciava-se uma migração da arte urbana para muros menos efêmeros. Mas Mundano insistia em sua guerra – que ganhou uma batalha polêmica quando ele o então secretário das Subprefeituras, Andrea Matarazzo, travaram uma disputa verbal nas páginas do jornal Destak naquele ano. Matarazzo acusava o grafiteiro de vandalizar o quadrado do Ibirapuera, pintado e apagado tantas vezes. Mundano rabatia dizendo que São Paulo precisa de arte. E na 13ª vez que pintou a placa de concreto – na companhia do artista Nomiez e com a frase “Apagaram tudo, pintaram tudo de cinza…”, de Marisa Monte -, a polícia apareceu. Foi a primeira vez, depois de “cem vezes parado por policiais”, que Mundano entrou numa viatura. Fichado, teve de pagar um salário mínimo para uma instituição que cuida de pessoas com câncer.

Um grafiteiro está sujeito às dores e doçuras da rua. Mundano foi preso. Abordado por usuários de crack. Quebrou um braço ao cair de uma escada. Desviou as orelhas de fios de alta tensão. Levou uma estocada de faca de um morador que o considerou um vândalo – e talvez ele fosse um. “Minha essência é ilegal, mas não quero destruir a casa de alguém”, explica. Antes de romper a barreira que separa a rua das galerias de arte – o artista já expôs suas obras em São Paulo, Belém, Cochabamba, Nova York, e outras cidades do mundo – Mundano teve seu caminho atravessado por outra espécie nativa da fauna da metrópole: o carroceiro. Em 2007, pintou a primeira carroça. De lá pra cá, foram 178, dentro de um exército de 20.000 carroceiros que carregam sozinhos 90% de todo o material reciclado de São Paulo – número que não passa de 2% de todo lixo produzido pela cidade. “Se pintarmos todas as carroças de São Paulo vamos inaugurar a maior exposição de arte ambulante do mundo, para uma população que em sua maioria não frequenta museus nem galerias”, afirma.

Alçando voos

Quando pintou a carroça número 106, do Sr. Valdemar no centro da cidade, Mundano escreveu pela primeira vez “Pimp my carroça”. No ano passado, uma foto no Facebook mostrava o veículo de outro catador estampado com a frase: “Um catador faz mais do que um ministro do Meio Ambiente”. A imagem ganhou 6.000 compartilhamentos. “Eu via as pessoas de fato pensando sobre os catadores”, diz o artista. “Vi o potencial da internet”. Mundano rascunhava seu projeto de ajuda aos carroceiros. Depois que participou da produção do filme “Belo Monte – Anúncio de uma guerra”, totalmente financiado por meio do crowdfunding, uma espécie de vaquinha organizada na internet, o artista descobriu de onde arrancar apoio. Publicou um video no site catarse.me, pedindo R$38.200 para concretizar o “Pimp my carroça”. Conseguiu R$63.250 doados por 792 apoiadores em dois meses, entre eles o comediante Fábio Porchat, ator do seriado Porta dos Fundos, sucesso inesgotável na web. E então foi dada a largada para o “boom” de glórias descrito no início deste texto. O interesse da imprensa. Os convites para palestras. A aproximação de marcas como Coca-Cola e Guaraná Antárctica, que tentaram se aproveitar da imagem sustentável inscrita nos projetos do grafiteiro. E um ex-colega de escola, diretor da Ambev, não entendeu nada quando viu Mundano surgir de uma sala de reuniões vestindo camiseta, as calças largas agraciadas com alguns pingos de tinta, emergindo do fim de uma fila de engravatados.

Mundano está confiante. Neste ano, ele e sua equipe começaram a desenvolver o “Pimp nossa coleta”, um aplicativo para celulares que localizará catadores e ecopontos para usuários interessados em descartar materiais recicláveis. Outros projetos, como o “Pimp nosso ecoponto” e “Pimp nossa cooperativa” buscam estender a esses locais as turbinadas artísticas que começaram com o “Pimp my carroça”, que também ganhará novas edições no Brasil. Embora esteja começando a experimentar o gosto da fama, Mundano não esquece das origens da labuta. Neste mês atendeu à campainha do escritório, dois catadores esperavam pelo artista, as carroças estacionadas na vaga criada por ele exclusivamente para carroceiros, as mãos machucadas de tanto trabalho, feridas abertas por falta de curativo. Mundano deu-lhes luvas protetoras. Ele é generoso.

Presenteou com latas de spray e ensinou o filho de Suzana, a cozinheira do escritório, a pintar. O moleque que chegou de Alagoas aos oito meses de idade passou a usar o tempo que gastava na rua para grafitar as paredes da casa em Guaianases, na zona Leste. “Meu filho adora o Mundano”, diz Suzana, que não cansa de arrumar a mesa do grafiteiro, o “mais bagunceiro” da casa. Mundano inspira os jovens em sua órbita. Depois do “Pimp my carroça”, dezenas de videos de projetos independentes pipocaram no catarse.me. Seu telefone não para de tocar. Gente do Brasil inteiro oferece ajuda, uma geração que deseja mudar o mundo. E provavelmente algumas palavras que podem muito bem caracterizar essa turma sejam as do escritor americano Jack Kerouac, as mesmas que permanecem fixadas num mural logo na entrada do sobrado na Vila Madalena: “Aqui estão os loucos. Os desajustados. Os rebeldes. Os encrenqueiros. Os que fogem ao padrão. Aqueles que vêem as coisas de um jeito diferente. Eles não se adaptam às regras, nem respeitam o status quo. Você pode citá-los ou achá-los desagradáveis, glorificá-los ou desprezá-los. Mas a única coisa que não pode fazer é ignorá-los. Porque eles mudam as coisas. Eles empurram adiante a raça humana. E enquanto alguns os vêem como loucos, nós os vemos como gênios. Porque as pessoas que são loucas o bastante para pensarem que podem mudar o mundo são as únicas que realmente podem fazê-lo.

O vídeo acima mostra a primeira campanha de crowdfunding do Pimp my carroça. O vídeo abaixo pertence à campanha do Pimp my carroça Curitiba – faltam cinco dias para acabar e você ainda pode doar.


One Comment on “Mundano a todo vapor”

  1. Parabéns irmão, a você que sempre teve o dom da escrita. Aquela que vai longe, além do alcance e fala sobre as verdades mais importantes do nosso cotidiano. E ao Mundano que hoje trabalha realizando o sonho dele, dando voz a quem até então era mudo.

    Show de bola mano. Parabéns!


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